Engoli-la nua e crua não é algo que se faça sem uma certa carranca de repugnância: a verdade pode ser bem amarga. Os fatos da finitude podem muitas vezes ser sentidos pelos sujeitos como intragáveis, inassimiláveis. Não é motivo pra se enfronhar na ilusão e pra viciar-se nas perigosas heroínas do auto-engano. Junkies de auto-mentira há muitos, e a que preço para todos. Já se disse que “a arte existe para que a realidade não nos destrua” (frase atribuída a Nietzsche, mas eu fracassei em encontrar sua referência bibliográfica). Uma arte que dê acesso a verdades de difícil assimilação é bem diferente de uma arte que aliene do real pondo-nos véus ilusórios diante da percepção, ludibriando-nos com uma fantasiação mistificante. Ilustro o ponto com uma canção dos Flaming Lips que contêm esta verdade de incômodo amargor: “você se dá conta de que todo mundo que você conhece vai morrer?” (“Do you realize that everyone you know someday will die?”) Nua e crua, esta verdade seria intragável; mas através da música, do mel da canção, a gente engole e deglute esta verdade de parca doçura. E quando cresce na gente esta verdade comida com menos carranca pois veio besuntada no mel da melodia, pode dar colheita (rara) de sabedoria.
Uma das virtudes que mais admiro, em Lucrécio, poeta-filósofo, cientista-rapsodo, que não cessa de ensinar quem lhe dá olhos e ouvidos, é a postura de que a medicina suprema está baseada na verdade. Viver na mentira adoece, talvez seja a doença mesma o mentir pra si mesmo e pra outrem, mas viver na verdade plena é pedir demais à fragilidade humana. Olhar direto pro Sol também queima as retinas. A verdade deve ser consumida não nua e crua, mas sorvida em uma taça onde há mel nas bordas. Hoje sabemos, a partir de estudos magistrais como aquele empreendido por André Comte-Sponville, que a verdade para Lucrécio não é doce, e devido a seu amargor é que necessitamos sorver o fel com o mel. A trajetória para a felicidade ensinada por Epicuro – codinome: ataraxia (serenidade) – consiste em uma vitória sobre o medo. E o medo tem causas cruciais em nossa relação com a morte e o âmbito do divino. Só o abandono das superstições que nutrimos sobre nossa finitude e sobre os deuses nos levará a não soçobrar nas tormentas da vida em um estado de vida agonizante, ao invés do desejável estado de vida florescente.
3. AS ESPIRAIS DO MEDO
Maria Cristina Franco Ferraz recupera o poema lucreciano junto com o Maelstrom segundo Poe e A Construção de Kafka em Espirais do Medo: Como Surfar Turbilhões (2024, Via Verita), seu novo livro, tão breve quanto denso. Num caldo artístico-intelectual nutritivo, a autora provê-nos com conceitos e metáforas sobre um como fazer a que raros atentam: trata-se de ritmar o medo. Dar ritmo a nossos temores e tremores ao invés de ser transformado por eles em uma estátua. O medo pode gerar paralisia, mas o medo também pode suscitar atitude surfista: fluindo nesta corrente, na nossa prancha – feita também de arte – a gente surfa e dança nas espirais do medo. A gente faz rock no meio da descida ao Maelstrom de fúria. Na prática, alguém como eu, que sofre de um certo stage fright, que se contrapõe a um anseio pelo espaço de visibilidade e expressão que o palco é, trato de ritmar o medo seguindo de certa forma a sagaz dica de Rilke – “prefira o difícil e assim tua vida não vai cessar de expandir-se”. Ou seja, como explicou em suas Cartas a um Jovem Poeta o conselheiro rilkeano, vou me metendo a estar fazendo justamente aquilo que temo. Ao invés de evitar e me escafeder, vou ao encontro do temor, ou melhor, uso o temor como seta que me aponta a direção do adversário a encarar. Mas tem que ter ritmo. Tem que surfar as ondas cheias de intempérie da vida. Na jam, achar a ginga. Arquitetar no móvel o groove. Com uma certa malandragem pra não soçobrar na tempestade. A música que me interessa é turbulenta, urgente e eletrizante como a cascata sônica de estrondo quase cósmico e estocástico do Radio Birdman, uma das melhores bandas do rock australiano.
4. A DESCIDA NO MAELSTROM E A ECO-ANSIEDADE
O medo não passa imune por mudanças temporais e o tempo nos trouxe, espécie humana e planeta terra, ao limiar da era onde estarão destravadas as eco-ansiedades e os eco-traumas. Desceremos, queiramos ou não, nas torrentes dos medos relacionados às catástrofes ambientais que já nos arrodeiam e nos arrastam. Reler um conto macabro, gótico, da genial pena de Edgar Allan Poe pode ajudar-nos no quê? A autora pondera que a turba e o turbo marcam presença forte nos contos de Poe, assim como nas pinturas de Turner (como Snow Storm, reproduzida abaixo): o Maelstrom representa justamente esta Natureza indomável, turbulenta, que entra em estado turbo de desordem, sugando tudo ao redor. “No conto de Poe as espirais do medo entram em um movimento vertiginoso, tragando objetos, embarcações e viventes”, escreve Maria Cristina. Na era da ansiedade que já se delineia, que já se manifesta em nossos sintomas “neuróticos” (que já foram reflexos da sociedade, mas hoje expressam a geohistória, o Antropoceno…), há o Maelstrom planetário sugando nossas esperanças de um mundo melhor. E ainda mal começamos a ver emergir os sintomas de nosso novo mal-estar nesta civilização – “capitalista tardia” – que vemos tão naufragante, e ao mesmo tempo tão insanamente aceleracionista. É neste contexto que podemos fisgar em Poe os prenúncios de um horror artístico que hoje aflora por toda parte em distopias turbulentas, inclusive nos aterrorizantes cli-fi de catástrofe climática (O Dia Depois de Amanhã, Geostorm etc.).
5. NATURALISMO ANTIGO, ANTÍDOTO PARA O NEGACIONISMO PÓS-MODERNO
“Enquanto a filosofia socrático-platônica projetou, num céu de ideias, essências universais, imutáveis e desencarnadas, poetas-pensadores antigos dedicaram-se a observar céus turbulentos, meteóricos, atmosferas mutantes, privilegiando a concretude de fenômenos físicos instáveis e efêmeros. Deste linhagem fazem parte Demócrito (ca. 460 a.C.-370 a.C.), criador do Atomismo, e alguns séculos mais tarde Tito Lucrécio Caro, filósofo e Poeta romano que viveu no século I a.C, seguidor de Epicuro, filósofo grego do perío do helenístico revisitado no Poema De rerum natura ou Da natureza das coisas. Α essas figuras filosóficas acrescenta-se Arquimedes de Siracusa, inaugurador da mecânica dos fluidos, que comparece de modo explícito no conto de Edgar Allan Poe, Uma descida no Maelström.” (FRANCO FERRAZ: 2024, p. 23) O naturalismo antigo nutre não apenas a literatura turbulenta, inquietante de Poe; serve-nos hoje para encontrarmos meios de surfar para longe do negacionismo que nos ameaça com sua cegueira voluntária massificada e seu perigoso, imperdoável imobilismo. O Maelstrom da crise climática já arrasta-nos para abismos inauditos – o Rio Grande do Sul que o diga – e a gente ainda se prende a falsas noções e tétricas supertições que nos apartam da empatia com a Terra e seus viventes. Impossibilitados de amar pois incapazes de surfar a vida em sua precariedade constitutiva, desaprendemos sobre como surfar intempéries e ritmar o medo.
6. AMOR-EMBARCAÇÃO, ANCORADO NA PRECARIEDADE
Só é possível amar aos mortais. O amor a deus ou aos anjos não passa de miragem. O barco quebrável do viver navega o turbilhão permanentemente ancorando-se em precariedade. O samba “Sem Porto”, de Wilson das Neves e Zeca Pagodinho, expressa bem este surf. Neste samba-blues, neste lamentoso pagodão, navega-se o turbilhão e a canção é quase uma reza ou súplica para que não se seja uma vida “barco-assombração”, o amor sempre uma miragem. Mas para que cesse o amor de ser miragem conducente à frustração crônica, urge amar aos mortais reconhecendo-os enquanto tais, a começar por si. Eu, mortal, amo-te, mortal – eis a súmula do bom começo. Não disse que conduzirá certamente a bom fim. No fim estaremos todos mortos, mas antes disso saibamos amar-mo-nos. Sabedoria não presta é pra isto?! “É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”, escreveu a enigmática Ana Cristina César. Ancorar qualquer navio nunca é moleza; as águas irrequietas e o planeta em movimentação nos impedem ancoradouro em qualquer porto fixo. Amar a vida necessita amor pela viagem. Pois vida é travessia e no mundo estamos só de passagem. E pode ser que nossa passagem seja abreviada, com sofrimento, por um Maelstrom. Olhar o Maelstrom na cara, com olho lúcido, tentar assimilar sua verdade nua e crua, e depois expressá-la com o mel da canção e do poema, é ímã que me convoca a esta estranha ação que também estas palavras expressam, ainda que não a contento, tão maladroit que soam. Bem mesmo é Poe quem escreve: “Pode parecer estranho, mas agora, quando estávamos justamente nas mandíbulas do abismo, sentia-me mais sereno (more composed) do que quando estávamos somente nos aproximando dele (o Maelstrom). Tendo decidido não mais ter esperança, livrei-me em grande parte do terror que de início me acovardava.” (POE, 2004, p. 114)
A Descent into the Maelström (1841)
7. EXTRAORDINÁRIO MAS NÃO SOBRENATURAL
O Maelstrom descrito em Poe, devastadora mescla de “whirpool” e “hurricane”, que arrasta para a perdição embarcações e baleias, é um horror que não remete ao âmbito do sobrenatural; é muito mais a Natureza saindo do ordinário e uma potente representação literária de um evento climático extremo. O narrador confessa seus traumas diante do acontecido, enumera seus lutos e descreve suas lutas, de certo modo antecipando um gênero de relato autobiográfico que contemporaneamente ganha expressão, p. ex., em filmes realizados em New Orleans com sobreviventes do Katrina.
Poe revela a psicologia do medo em situação extrema – como na descrição das ações do irmão do narrador enquanto o barco descendia velozmente no abismo. O brother de nosso transtornado narrador, na visão deste, foi posto pela situação extrema em estado de um “raving maniac through sheer fright” (p. 114). A mente não é lúcida, nem a razão bem ponderada, em meio a temporais de tal fúria. Vale assinalar que a epígrafe escolhida por Poe evocava o âmbito da fundura na figura do poço de Demócrito, em citação do filósofo Joseph Glanvill, que faz menção a uma abissal inescrutabilidade, vastidão e profundidade dos “ways of God in Nature”; Glanvill pontua ainda q nossos modelos que tentam botar em “frame” esta realidade fracassam por incomensurabilidade. É uma epígrafe densa e enigmática, que aponta também o abismo entre a capacidade humana de cognição e uma natureza que às vezes se mostra menos mãe e mais megera. Contemporaneamente, isto também se expressa na discórdia entre os que preferem, como metáfora do planeta, Gaia versus os que propugnam Medéia. Quando Eileen Crist fala numa Gaia In Turmoil parece fundir as duas figuras em uma só: Gaia-Medéia, entidade em tormento, geradora de tormentas, matrix de perturbações infindas e crescentes. E a culpa do turmoil, por assim dizer, é de uma espécie, a nossa. A verdade, segundo Demócrito, mora nas funduras – ou, dito em canção, “a verdade, meu amor, mora num poço” (como já dizia o samba de Noel Rosa, “Positivismo”). E talvez não possamos lá descer sem destroçar nossa embarcações.
8. WHAT A WRECK!
A literatura aqui nos comunica uma visão de dentro do desastre, uma descrição a partir do olho do furação, que culmina com a enumeração de vários objetos – troncos de árvores, fragmentos de casas, um barco mercante holandês… – arrastados neste incontenível Maelstrom. Explicita-se em Poe a precariedade daquilo que uma presunçosa civilização havia julgado sólido e bem implantado. Sobrevivente deste “dreadful doom” (p. 115), o narrador revela ser capaz de colocar-se a uma certa distância crítica e cognitiva do fenômeno em que está sendo arrastado ao tentar compreendê-lo cientificamente. Como faz ao comparar esferas e cilindros e as diferents velocidades com que são arrastados no vórtex. Esta aptidão rara de ser um Arquimedes em meio às tempestades talvez seja virtude recomendável para navegar as perturbações de nosso presente e desenvolver a arte de ritmar o medo. Também Lucrécio evocava a figura da serenidade relativa do sábio que observa, desde terra firme, a convulsão dos mares e a confusão psicofísica dos marujos em mar revolto. Nosso narrador sobrevive enquanto seu irmão falece – e talvez isto se deve justamente ao fato de nosso contador ter podido conjugar a observação do real do redor com uma ação veloz – afterall, “the emergency admitted no delay” (POE, Maelstrom, p. 117). Exausto de fadiga, “speechless from the memory of its horror”(117), o narrador resgatado dá voz a seu ecotrauma de maneira que reverbera em nossa cultura onde parece cada vez mais valer a consigna marxista – “tudo que é sólido se desmancha no ar”. O Antropoceno, afinal, significa em síntese que a estabilidade de 12 milênios do Holoceno está morta pelos humanos e que o futuro será vórtex – é surfar, ritmando o medo, compreendendo e agindo em meio à dinâmica crescentemente caótica que destravamos, ou então soçobrar na paralisia e naufragar agarrado ao mastro de um navio frágil, sugado ao abismo.
No encerramento do livro, Maria Cristina Franco Ferraz pondera: “Turbulências atmosféricas, cada vez mais evidentes e apavorantes, agitam os céus deste século, prestes a desabarem, ameaçando concretamente, como nunca antes, a vida da própria terra e de seus viventes. Nesse clima, a farmácia do medo-remédio capaz de acordar a lucidez é mais do que necessária. Acolhendo o convite expresso no conto de Edgar Allan Poe e à luz do naturalismo lucreciano, há que conhecer o regime do imenso Maelström para o qual o planeta vai-se dirigindo, para se ter alguma chance, como o marujo do conto, de poder contar essa história. O desvio pela reflexão, uma sutil declinação através de textos literários e filosóficos pode favorecer um estado de corpo propício à invenção de saídas. Pois é preciso tanto despertar a lucidez quanto aprender a surfar voragens.” (2024, p. 87)
Eduardo Carli de Moraes
www.acasadevidro.com
Goiânia, Julho de 2024
A SER CONTINUADO
ou
TÁ TUDO EM ANDAMENTO.
REFERÊNCIAS
IMAGÉTICAS
Img de abertura – Deviant Art – https://www.deviantart.com/austinincharacter/art/The-Maelstrom-882877346
Pintura de Turner via Tate – https://www.tate.org.uk/art/artworks/turner-snow-storm-steam-boat-off-a-harbours-mouth-n00530
A Grande Onda, de Hokusai – Via BBC https://www.bbc.com/portuguese/geral-59368553
BIBLIOGRÁFICAS
COMTE-SPONVILLE, El Miel et L’Absynthe.
FRANCO FERRAZ, Espirais do Medo.
POE, Descent Into the Maelstrom.
RILKE, Cartas a Um Jovem Poeta.
MUSICAIS
Radio Birdman
Philip Glass
Flaming Lips, Yoshimi…
OUTRAS LEITURAS:
N-1: Pandemia Crítica #125 – Medo – ou como surfar turbilhões
OUTROS VÍDEOS:
NAS MÍDIAS SOCIAIS:
Publicado em: 13/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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